26/10/2016

A PEC 241 e a cegueira ideológica por Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Se o Senado referendar o texto aprovado pela Câmara, a economia enfrentará um desastre

Qualquer um, inclusive o Estado, se quiser bons resultados, deve focar em gastar no que gera mais receitas. Não se pode olhar despesas e receitas em separado – regra básica econômica, financeira e contábil.

Com a PEC 241, o governo Temer, num momento de queda de receitas e aumento de despesas financeiras, congela as despesas primárias, que, provadamente por diversos exemplos teóricos e práticos, podem gerar mais produtividade e receitas.

A PEC, para ter algum sentido, deveria passar a régua rígida de congelamento no lado das despesas não primárias, não nas primárias, que deveriam sofrer revisão caso a caso. Todo ano o governo teria de pagar menos juros e quitar parte da dívida.

As trajetórias das diferentes despesas primárias são variadas e precisam ser corrigidas uma a uma, com análise complexa de políticas públicas.
São elas, ademais, que elevam demanda agregada e produtividade, de modo que, ao proibir aumentos reais, a economia ficará afundada em crise.

Investimentos públicos em infraestrutura incentivam o investimento privado e geram ativos imobilizados, como pontes, aeroportos, estradas, ferrovias, trens etc. para a sociedade.

Gastos com educação e saúde elevam o ativo humano, pois deixam os indivíduos mais produtivos e depois menos custosos para o Estado.
Gastos sociais, como o Bolsa Família, redistribuem renda numa sociedade imensamente desigual e garantem mais consumo, uma demanda agregada maior. Algo semelhante acontece com os aumentos reais de salário mínimo.

A grande maioria dos economistas mais respeitados no mundo vêm defendendo que o cerne da recuperação dos países é elevar a demanda agregada.

Por conta da desaceleração de nações como a China, que estavam puxando os demais, e por conta da concentração excessiva de riqueza e renda, não há consumo suficiente para dar conta da produção, que veio aumentando muito nos últimos anos com os avanços tecnológicos.

A forma de o mundo voltar a se desenvolver consideravelmente é incluir mais pessoas na economia, fazer com que mais gente possa consumir e, para isso, é preciso reduzir as desigualdades.

Para que o aumento de consumo não venha a gerar novos desequilíbrios lá na frente, como inflação, é interessante que a redução das desigualdades não seja apenas por distribuição de dinheiro, mas por aumento de produtividade via melhoria de infraestrutura e do nível de capital humano (educação e saúde).

As referidas despesas primárias são importantíssimas para o desenvolvimento econômico. Se a PEC 241 passar também no Senado, tal como é hoje, será um desastre para a economia, e não é possível que os membros do Ministério da Fazenda não vejam isso. Mesmo com a reforma da Previdência, ela espremerá tanto alguns gastos essenciais que sequer é viável; é inexequível.

Quanto às despesas não primárias, gasta-se centenas de bilhões em juros, os mais altos do planeta. São mais de 20% de todas as despesas.
O Brasil, ano a ano, faz o que se chama de rolagem de dívida, paga a contraída no passado com dinheiro de nova dívida. Há quem use esse número para elevar o valor de juros pagos, mas isso é obviamente um erro.  
Por outro lado, contabilmente, há aí despesas e, financeiramente, há desembolso. Em suma, há uma perpetuação da dívida e do pagamento de juros astronômicos.

Juros são a remuneração pelo tempo que alguém detém o dinheiro de outrem. O ideal de um empréstimo é que ele seja pago logo, a menos que o retorno do investimento daquele dinheiro seja maior do que os juros pagos, algo incomum.

Quanto mais se paga juros – por conta de o percentual ser alto e, se for alto, é pior que o tempo seja longo –, mais chances de o empréstimo não ter valido a pena. No Brasil, paga-se juros altíssimos e a dívida apenas aumenta.
Defensores da PEC usam uma cortina de fumaça para fugir do real problema, ao criticar quem infla o valor dos juros com os valores da dívida rolados. A questão é que o País está pagando dívida, juros altíssimos e contraindo nova dívida, o que não gera retorno. É um círculo vicioso que provoca enorme aumento das despesas estatais.

O déficit brasileiro não estourou por conta das despesas primárias, que crescem regularmente desde 1997, apesar de que poderiam ser otimizadas: reduzir corrupção e má eficiência, por exemplo, para gastar melhor.

O déficit se deve à queda de receitas (provocada pela falta de demanda agregada que gera queda de vendas), às desonerações tributárias e ao aumento de despesas por quase duplicação dos juros de 7,25% em janeiro de 2013 para 14,25% em janeiro de 2016, tendo havido redução de míseros 0,25% há alguns dias.

Some-se a isso que boa parte do aumento dos gastos nos últimos tempos se deu por compra de dólar pelo Brasil para constituir sua reserva e por transferências de títulos para bancos federais, como explica Felipe Rezende.  

Caíram as receitas e houve muitas despesas não primárias, mas o governo quer corrigir o déficit congelando as despesas primárias. Há erro de avaliação e de proposta de solução.   
Onde está o cerne do problema da dívida: nas despesas primárias, que, como dito, têm potencial para tirar o País da crise econômica e não cresceram fora da curva, ou nas despesas financeiras, que têm apenas gerado desembolsos de centenas de bilhões em juros?

É essa a decisão que o Brasil precisa tomar, e não parece ser difícil quando o tema é colocado de forma honesta e clara.
Para pagar a dívida, é preciso que sejam geradas receitas de outro lugar, que não de novas dívidas, como o Brasil faz. Deve-se gerar mais receitas tributárias com urgência. É necessário elevar a demanda agregada, para que se consuma e se venda mais e, então, se arrecade mais.

Para que haja mais demanda agregada e maximização das receitas, é necessário destravar a economia. Não há outra saída melhor em curto prazo do que corrigir um grave desequilíbrio brasileiro: o pior sistema tributário do mundo.

Sim, o Brasil tem uma das piores políticas fiscais do planeta: juros no topo e o sistema tributário mais complicado, extenso e regressivo. Ela faz o Brasil refém do rentismo e não beneficia a produção, tanto que o País se desindustrializou nos últimos anos.
A insistência em não reformar a tributação e manter um nível sobre a indústria que é mais do que o dobro da carga dos países da OCDE, enquanto que o nível da tributação da renda da pessoa física e da riqueza está bem abaixo do nível nesses mesmos países, é acreditar – ou fingir que se acredita – que a carga tributária já é muito alta e que não se pode mais mexer nela.

A carga é altíssima para os pobres e classe média, mas baixa para os muito ricos. É necessário reformar a tributação de cima a baixo.
Não é apenas uma questão de acabar com a isenção de dividendos, mas de reformular quase tudo, para que, com a queda da tributação do consumo, ocorra redução nos preços e da inflação. Ao mesmo tempo, se pode obter mais receitas com o fim da isenção dos dividendos, a correção nas deduções permitidas no Imposto de Renda e a criação de novas alíquotas mais altas para os mais ricos.

Parece claro o que deve ser feito no Brasil. Poucos grandes economistas estrangeiros discordariam do que está sendo dito neste texto. Seus trabalhos recentes confirmam os argumentos.
Basta conferir os estudos de conservadores como Olivier Blanchard, Larry Summers e Allan Greenspan, que assumiram ter contribuído para a crise de 2007-2009 e não ter ferramentas para lidar com ela a partir dos sistemas teóricos que antes defendiam.

Está na hora dos membros do Ministério da Fazenda e dos demais apoiadores da PEC 241 se atualizarem e fazerem como Greenspan, ex-presidente do banco central americano por quase 20 anos, que, após ser posto contra a parede por conta da crise, disse que tinha cometido erros graves por cegueira ideológica.

Muitos brasileiros continuam defendendo posições que vão exatamente na linha geradora da crise. O resultado não poderá ser outro: aumento da desigualdade e mais crise.
                  
Marcos de Aguiar Villas-Bôas
Doutor pela PUC-SP, mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology.

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